Eu sei que o doutor não vai acreditar num pingo do que vou lhe contar. Mas se o senhor quiser, eu lhe levo lá. É logo ali, doutor, no São Cosme. A gente não gasta nem quatro horas de remo. É lá que existe a siriringa. Só o senhor vendo, doutor: parece coisa do Tinhoso! É como se a água daquele pedaço de rio vivesse fervendo. É borbulha que não acaba mais....Mas deixe estar que de primeiro não era assim não, doutor Isso aconteceu não faz tempo. A minha avó, que Nosso Senhor a tenha em sua santa guarda, ainda era mocinha e morava na ilharga da casa do homem que cortou a mão peluda. A tapera onde ele morava ainda está lá pra quem quiser ver e fica a uns três estirões da siriringa. Mas deixe eu lhe contar como tudo aconteceu dês do começo, tintim-por-tintim.
Uma certa noite o dito homem vinha de uma viagem, sozinho e Deus, remando em sua montaria jita. Era uma sexta-feira de lua cheia. O doutor sabe que a sexta-feira é amaldiçoada,não sabe? Pois não foi numa sexta-feira que judiaram do Nosso Senhor Jesus Cristo?Pois então. Mas como eu ia dizendo: lá por volta da meia-noite, hora por demais temida por estas bandas, o homem vinha-que-vinha na sua canoinha. Quando passava pelo local onde hoje existe a siriringa, aconteceu a assombração: de repente, do fundo do rio, apareceu aquela mão desconforme. Mão negra. Feia. Peluda. Meio de gente, meio sei-lá-do-que. Parece até - que Deus me perdoe pelas horas que são - a mão do Capiroto. Foi aparecendo e agarrando na beira da canoa querendo-porque-querendo levá-la com tudo pro perau. O senhor já pensou, doutor, na situação daquele pobre caboclo diante de tamanha arrumação? pois mais do que depressa ele danou-se a bater na mão tinhosa com o remo de pracuúba. E o senhor pensa que a peste da mão peluda largou a montaria? Largou nada, doutor. Quanto mais ele batia, mais ela o puxava pro fundo do rio. No meio desse furdunço parece que o mundo parou em volta dos dois: parou o rio, parou o vento, parou o tempo. Somente a lua a pino alumiava o desespero do homem. O silêncio era tanto que só se escutava o baque do remo contra a mão e as batidas do coração do caboclo em tempo de sair pela boca. E ele ali, doutor, sozinho e Deus, a lutar com aquela mão saída - credo em cruz três vezes! - do fundo do inferno. E bateu até o remo virar fanico. A montaria já estava com água pela metade, afunda-não-afunda. Mas quando tudo parecia perdido, avistou, pelo rabo do olho, a lua refletida na lâmina do terçado preso na proa da embarcação. Foi um pulo só, doutor: o caboclo agarrou-se ao cabo do terçado como se fosse o cabo da salvação, o cabo da própria vida! E foi tamanho o desespero do homem, doutor, que o terçado desceu com o peso de um raio, certeiro, violento, decepando de um só golpe a mão atentada que afundou siriringando, para sempre, nas águas barrentas do São Cosme.
Mas deixe estar que a história não acaba aí, doutor: o homem chegou em casa ardendo em febre e com uma terrível dor de cabeça. Que dor de cabeça foi essa, doutor, que o pobre acabou enlouquecendo e morrendo à míngua, sete dias depois. E desde esse tempo, nunca mais parou de siriringar no lugar onde afundou a mão peluda.
Eu sei que o doutor não acreditou num pingo do que eu lhe contei. Mas se o senhor quiser, eu lhe levo até lá. É logo ali no São Cosme.
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