“A natureza está secando”: quilombo no Marajó vive impactos do arrozal e clima de violência

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terça-feira, 22 de novembro de 2011

AS 1001 GENTES DE DALCÍDIO JURANDIR

          As 1001 Gentes de Dalcídio Jurandir

É uma das criaturas mais simples deste país de gente importante. E também um dos maiores escritores. Antigamente, de pés descalços e braços nus, corria pelas campinas de Marajó atrás das borboletas azuis que não eram de Casemiro de Abreu. Hoje, de borzeguins e paletó-saco, percorre a Rua do Catete e anexos atrás da vida. É Dalcídio Jurandir. Um romancista tão grande como sua ilha.

A lua e a chuva
 Veio do país das águas, de uma terra que Deus, em fim de obra, deixou sem retoques. Por isso Marajó ficou assim grandona, capaz de engolir vários países. Braba, tosca, mal saída da forma de Deus. Inchada! Não pensem que as noites de Marajó são como as outras  noites. Que esperança! Quando a lua vem a furo é maior que a roda de um carro de boi! Quando chove nos campos de Cachoeira é como se Dilúvio voltasse! É a aurora do mundo à disposição de todos nós. De graça.
   Sem pressa e sem atropelos
Não é fácil falar com Dalcídio Jurandir do Grão-Pará. É um Jurandir arredio, bicho de concha, que aparece nas casas de livros na boquinha da noite. Olha um volume, olha outro, dá dois dedos de prosa ao famoso mercador Carlos Ribeiro, da Livraria São José, para desaparecer como veio. Suavemente, sem fazer barulho, que o lema desse mestre de modéstia é o mesmo de Valdemar Cavalcanti. Isto é, entrar na fila, não atrapalhar os outros, E assim tem vivido Dalcídio Jurandir. Sem atropelar ninguém.
                                        
                                             A importância de usar pasta
 Enfim, estou de Dalcídio Jurandir em punho. Vou caminhando com sua simplicidade pela Rua São José. Cachos de cigarros desfolham dos pés-de-pau. A tarde começa a encerrar o expediente. Senhores apressados, tinindo em seus colarinhos, passam empurrando avassaladoras pastas. Falo da importância desses utensílios na vida nacional. Dalcídio sorri para informar que sempre teve grande respeito pelos portadores de pastas. Principalmente pastas negras. No mínimo são diretores-gerais ou banqueiros em trânsito para os dez por cento ao mês. No mínimo!
  Farinha d'água dos seus beijus
 Conversa puxa conversa. Pergunto pela sua bem trabalhada e lavrada existência de escritor. E Dalcídio: -Mal ou bem venho mergulhado nesse barro há mais de trinta anos, seu doutor. Todo o meu romance, distribuído em vários volumes, é feito, na maior parte, da gente mais comum, tão ninguém, que é a minha criaturada de Marajó, Ilhas e Baixo Amazonas. Um bom intelectual da cátedra alta diria: "são as minhas essências, as minhas virtualidades". Eu digo tão simplesmente: "é a farinha d'água dos meus beijus". A esse pessoal miúdo que tento representar em meus romances costumo chamar de aristocracia de pé no chão. Modéstia à parte, se me coube um pouco do dom de escrever, se não fiquei por lá, pescador, barqueiro, vendedor de açaí, o pequeno dom eu recebo como um privilégio, uma responsabilidade assumida, para servir aos meus irmãos de igapó e barranco. Entre aquela gente sem nada, uma vocação literária é coisa que não se bota fora. A eles tenho de dar conta do encargo, bem ou mal, mas com obstinação e verdade. O leitor que acaso folheie um dos meus romances pode logo achar o estilo capenga, a técnica mal arranjada, a fantasia curta, mas tenha um pouco de paciência, preste atenção e escute um soluço, um canto, um gesto daquelas criaturas que procuro interpretar com os pobres recursos de que disponho.
E a propósito, lembra Dalcídio Jurandir de seu velho tio de Cachoeira, barbeiro e cozinheiro, uma espécie de Brillat-de-Savarin de comarca, gênio de um prato só: o picado fradesco. E Dalcídio: - Não tenho no romance as manhas e perícia que tem meu tio na cozinha. Mas vou fazendo, a meu modo, o meu picado fradesco...
Pára no meio da rua, diz que está falando demais, que a tarde despenca muito bonita para a gente tratar de coisas de letras redondas. E volta ao Jurandir bicho de concha. Quase sem fala. De corda quebrada. [...]
  De repente, a chuva
E, de repente, aconteceu Chove nos campos de Cachoeira, romance que fez Dalcídio voar definitivamente do Grão-Pará para o Brasil. Foi uma estréia de balançar os alicerces. Luminosa! [...] O livro era mais poderoso do que ele. E extraiu Jurandir de terras e águas do Pará. Definitivamente. [...]
  A mentira das distâncias
 E assim se conta, em prosa curta, a pequena história de um grande escritor, o modesto Dalcídio Jurandir, bicho de concha, amigo do silêncio, inaugurado na Vila de Ponta de Pedras na época em que a folhinha marcava precisamente 1909. Era janeiro, mês carpinteiro. [...] Durante trinta anos tem Dalcídio lavrado a sua incomparável lavoura, com obras que vão atravessar os tempos, porque têm a eternidade do povo, a fala do povo, o jeito do povo. Se não é badalado como merece, é porque o tempo não descobriu Dalcídio Jurandir. Mas esse Cristóvão Colombo virá, hoje ou amanhã, dar alto-relevo a romances como Linha do Parque, Três casas e um rio, Belém do Grão-Pará e o belíssimo Primeira manhã, com que Dalcídio engrandeceu a ficção deste país. É um Dalcídio para os dias que virão. Não importa, em termos de eternidade, que o rato pareça maior do que a montanha. É puro erro de perspectivas. Mentira das distâncias.
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Fonte: Site Dalcídio Jurandir


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